André Felipe
Lima
A
Hora é essa. Brasil e Itália precisam reestruturar seus
laços comerciais, dinamizá-los em um momento onde os olhos
estão voltados, quase que exclusivamente, para o novo poderio
econômico que emerge na Ásia. A união histórica
e cultural que envolve os dois países ao longo de quase dois
séculos, que culminou em 25 milhões de oriundi, se constitui
em um marketing natural dos mais extraordinários da economia
internacional e, portanto, não pode ser desprezada. Nessa reportagem
especial da Comunità Italiana todos os acertos e desacertos dessa
parceria estão em debate, envolvendo mercado, governo e, sobretudo,
ítalo-brasileiros.
O peixeiro carioca Pascoalino Gentile,
45 anos, talvez não saiba, mas faz parte de uma comunidade de
cerca de 25 milhões de brasileiros, cujos laços com a
Itália são muito mais que culturais. São de sangue,
suor e, sobretudo, empreendedorismo. Um grande número destes
oriundi herdou de seus antepassados, que aqui chegaram em fuga da Segunda
Guerra Mundial, negócios que hoje representam, aproximadamente,
35% do Produto Interno Brasileiro (PIB). Só na Federação
das Indústrias do estado de São Paulo (Fiesp), segundo
estimativas de Edoardo Polastri, presidente da Câmara de Comércio
Ítalo-brasileira na terra da garoa e, interinamente, da associação
mundial das 71 câmaras bi-nacionais, sessenta por cento das 100
mil empresas brasileiras associadas têm origem italiana.
Com esse cenário paulista
- apesar da inexistência de estatísticas precisas em outros
estados -, seu Pascoalino tem mesmo do que se orgulhar, afinal, ele
é o retrato da alma italiana, sempre banhada em perseverança,
onde quer que esteja, em qualquer canto do Brasil ou do mundo. Esse,
talvez, tenha sido o maior legado deixado por seu pai, Giuseppe, que
foi jornaleiro, padeiro e, por fim, peixeiro. Hoje, seu Pascoalino,
que 26 anos atrás quis ser arquiteto, exterioriza essa alma nas
feiras livres do Rio.
A rotina começa às
quatro horas da madrugada. È nesse horário, ainda sem
a luz do sol, que seu Pascoalino ruma para Niterói em um de seus
dois caminhões frigoríficos para buscar mercadoria. Embarcada
meia tonelada de peixes, o oriundi retorna às feiras do Rio.
- Trabalho muito, mas não
penso em mudar de vida. Com a peixaria, sustento minha casa - diz, com
brilho nos olhos, o oriundi.
Casos como o de seu Pascoalino
e o extraordinário número de descendentes de italianos
no Brasil motivaram uma convicção no atual Governo federal:
a necessidade de intensificar os laços comerciais com a Itália,
importando, inclusive, modelos sócio-econômicos de sucesso
na Bota, como os distritos industrias, também conhecidos por
clusters por agregar em único centro várias pequenas empresas
que acabam fortalecendo a economia da região em que atuam. Recentemente,
o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior,
Luiz Fernando Furlan, esteve reunido com membros da Câmara de
Comércio de Milão e da Promos milanesa para conhecer o
know how italiano para, quem sabe, implantá-lo ainda este ano
no mercado brasileiro. Já há estudos no Planalto para
que isso aconteça brevemente.
A atuação do governo
brasileiro no exterior recrudesceu elogios que há muito não
se ouviam no mercado internacional. Ricardo Landi, do ICE, define a
gestão Lula como “brava” pela confiança conquistada
junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial.
- Não só os grandes
investidores, mas também médios e pequenos, partem de
uma posição de confiança em relação
ao Brasil.
Se por um lado há a possibilidade
de implantação do modelo italiano de distritos industriais
e um reconhecimento internacional da estabilidade econômica no
Brasil, um outro lado – decisivo para a estabilidade econômica
e para o fortalecimento desse modelo - se agrava: as pequenas e médias
empresas ainda esbarram na estrambótica carga tributária
brasileira.
- De cada 100 empresas que começam
a operar no Brasil inteiro, em um ano, 40 fecham. No segundo ano, mais
30 - alerta o presidente da Câmara de Comércio Ítalo-brasileira
no Rio, Raffaele Di Luca.
Marketing natural
com 25 milhões de pessoas
Taxa de juros alta, burocracia
alfandegária, impostos em cascata e legislação
pouco elucidativa ainda preocupam investidores. Mas em se tratando de
empreendimentos da Bota, apesar dessas barreiras comerciais, não
há melhor mercado no mundo para absorver produtos italianos –
garante Di Luca - que não o Brasil.
Não é preciso fazer
marketing para vender macarrão italiano, qualquer produto italiano.
Em cada família brasileira tem alguém com ascendência
italiana. Se puder escolher entre um produto espanhol, argentino ou
italiano, o brasileiro vai querer o italiano. Há um laço
forte. Não investir em um marketing natural como este é
uma forma de realmente querer negar um bom business. Imagine lançar
macarrão na Suécia? Vai ter de ter um baita marketing.
Andréa Matarazzo, ex-embaixador
do Brasil na Itália, durante a gestão de Fernando Henrique
Cardoso na Presidência, reconhece o peso de uma parceria mais
estreita entre Itália e Brasil na área econômica.
Ele faz coro aos que alertam as autoridades sobre a importância
de o Brasil ter hoje mais de 25 milhões de oriundi.
- Como eu saí junto com
o FH, não sei exatamente das relações italianas
com o governo Lula, sei que ele não esteve por lá ainda.
Eu, obviamente, como italiano, vivendo em um país que abriga
26 milhões de italianos e sabendo que a Itália é
a quinta economia do mundo, acho que é um grande peso. O FHC,
pelo que me lembro, entre 1997 e 2000 esteve três ou quatro vezes
na Itália. Uma relação bem mais próxima
– alfineta Matarazzo.
Ser de centro-esquerda, viés
do governo Lula, explica Matarazzo, não afasta o país
de uma aproximação comercial com a Itália mais
profícua:
- O Governo FHC também era
de centro esquerda, um pouco mais progressista que o do Lula, mas nunca
houve dificuldades de aproximação. Talvez seja uma questão
de prioridades, o eixo da atual política externa é diferente
do de FHC. Aliás, nem acho que os dois países estejam
longe um do outro, só acho que as relações entre
eles não vêm sendo aquecidas.
Apesar desse atraente marketing
natural recheado de potenciais consumidores, a balança comercial
entre Brasil e Itália começou a desequilibrar-se intensamente
a partir de 2001, favorecendo a economia brasileira. São, aproximadamente,
70% de exportação pendendo para o Brasil. Commodities,
como carnes e grãos, que ainda predominam nas exportações,
passaram a contar com componentes mecânicos na lista, ou seja,
produtos com mais valor agregado, como os carros da Fiat, marca dessa
reviravolta na balança entre os dois países.
- Mudaram os perfis das exportações
brasileiras - vaticina o adido comercial da Itália no Rio, Lívio
Angeloni, que atende os estados do Rio de Janeiro, Bahia e Espírito
Santo. E o câmbio tem culpa nesse cartório? Desde que a
moeda européia nasceu, o brasileiro prefere exportar para Itália.
Afinal, o euro, com câmbio a R$ 3,60, não permite o contrário.
Hoje, qualquer produto que se compre no exterior e se coloca em uma
gôndola brasileira, chega ao consumidor, no mínimo, com
80% de custo a mais que na origem.
O Brasil é o sétimo
país em importância de importação e volume
para o mercado italiano, confirma Ricardo Landi, diretor geral do Instituto
Italiano para o Comércio Exterior (ICE), no Brasil.
- Não era especificamente
declarado como país prioritário – enfatiza.
Segundo Landi, esta posição
do Brasil na escala de prioridades comerciais italianas somente ficará
mais clara quando programas promocionais do governo Berlusconi forem
definidos e aprovados.
- Neste momento, não sei
ainda. Estou falando de prioridade política. Quais são
as razões? As razões são tantas... já havia
condições favoráveis que não foram aproveitadas
o suficiente. Há que se trabalhar muito para aproveitar essas
condições – assinala Landi, sem mais detalhes sobre
quais seriam essas condições.
Há, contudo, uma expectativa
em torno do nome de Vincenzo Petrone, ex-embaixador da Itália
no Brasil e que, atualmente, atua na Federação das Indústrias
Italianas.
- Ele é um personagem muito
importante, que conhece muito bem o Brasil, que sabe quantas possibilidades
existem aqui. E, encontrando-se entre empresas privadas italianas, é
claro que poderá endereçar positivamente escolhas para
o Brasil. Creio também que ele tenha contribuído para
a inserção do Brasil entre as quatro principais prioridades
do governo italiano – destaca Landi, que recebe mais de 50% de
todo o investimento do ICE na América Latina em suas instalações
na capital paulista.
O outro lado da
moeda
O
fato de a balança completar o quarto ano favorável ao
Brasil, não significa, porém, que está tudo muito
bem. Embora a Itália não comporte um grande número
de empresas multinacionais, seu mercado é composto por 92 % (cerca
de 170 mil empresas) de pequenos e médios empreendimentos, também
responsáveis por grande parte da exportação de
produtos italianos. No Brasil é bem diferente: as empresas exportadoras
são, aproximadamente, 15 mil, das quais somente 2% são
pequenas e médias. Em face disso, Di Luca recomenda mais cautela
e menos euforia da indústria brasileira. Ele explica o porquê:
- Costumo dizer que se você
vende uma caixinha do tamanho de um maço de cigarros cheia de
diamantes equivale a quatro navios cheios de aço que vão
para a Europa. Se o Brasil exportasse, por exemplo, bem mais produtos
com alto valor agregado, então seria um diferencial enorme. Hoje
o Brasil tem de exportar milhões de toneladas em volume e peso
para poder arrecadar o que vem arrecadando.
Trocando em miúdos, exportar
mais commodities que tecnologia não é, decididamente,
o melhor caminho para a economia brasileira. Suscetível a qualquer
mudança mais drástica no mercado, o Brasil sentiu mais
recentemente o custo de priorizar a exportação de commodities,
deixando em segundo plano o fomento de tecnologia própria.
Exemplo disso foi quando a Rússia,
no início da década, começou a cortar mais árvores
e a vender madeira mais intensamente no mercado internacional. Vulnerável,
o comércio exterior da madeira brasileira caiu. Algumas empresas
tiveram de começar a tentar vender produto já acabado,
com valor agregado.
- Muitos papéis que saíam
como brutos, saem agora semi-acabados. Mas o que acontece: o Brasil
não está importando maquinários para a própria
indústria, e o que vai acontecer é que teremos aqui uma
indústria com máquinas obsoletas e uma situação
parecida com o que aconteceu na Argentina, quando era mais barato importar
do que produzir e vender. Hoje a indústria argentina precisa
vender, mas está falida – prevê Di Luca.
A produção de um
dos presuntos mais caros da Itália, o bresaola, é praticamente
feita com carne bovina brasileira. O presunto, digamos ítalo-brasileiro,
acaba sendo exportado para os Estados Unidos. Situações
como esta não são, entretanto, motivo para que o Brasil
reduza as exportações, mas acenda, sim, o sinal de alerta
para qualificar tecnologicamente a sua indústria. Várias
portas se abrirão ainda mais para o produto brasileiro em mercados
mais rigorosos com produtos pejorativamente ditos de terceiro mundo.
O Governo italiano, por exemplo,
vem tentando, desde 1997, fazer com que o Congresso brasileiro coloque
em prática um acordo bilateral de desenvolvimento tecnológico,
que prevê uma verba anual de 200 mil euros a projetos de tecnologia
alimentar e da informação, para saneamento básico
e ambiental e restauração de obras de arte.
Impasses tecnológicos
Caso semelhante de incapacidade
tecnológica no país para abrigar investimentos internacionais
que exigem valor agregado ocorreu com uma das maiores empresas fabricantes
de equipamentos especiais para prospecção de petróleo,
a Nova Pignone, cuja sede é Florença. Responsável
por uma ampla parceria com a Petrobras na construção de
novas plataformas petrolíferas, a empresa optou, porém,
por trazer as sofisticadas máquinas da Itália. Simplesmente
porque não há parceiros com tecnologia de ponta para produção
local. Cada máquina custa, aproximadamente, US$ 60 milhões.
Convencer o investidor estrangeiro
de que ele deva apoiar não somente a produção,
mas, sobretudo, a capacitação tecnológica é
uma tarefa árdua, mas que vem sendo cumprida. O Governo italiano
é um dos mais sensíveis a esse cenário no Brasil
e vem apoiando o governo parceiro para modernização industrial.
O ex-embaixador do Brasil na Itália,
Andrea Matarazzo, cita como fundamental um intercâmbio tecnológico
intenso entre os dois países. E a marca dos bancos brasileiros,
na contramão desse contexto, faz a diferença quando o
assunto é tecnologia:
- A tecnologia bancária
brasileira é uma das mais avançadas do mundo. Nós
estamos no ano 2500 e a Itália está muito atrasada. O
Brasil progrediu muitíssimo em tecnologia de software.
Edoardo Polastri, da Câmara
de Comércio Ítalo-brasileira de São Paulo, cita,
como exemplo do esforço da economia italiana em colaborar para
o amadurecimento de outros mercados, um sistema privado que oferece
financiamento a longo prazo e com juros baixos a todas as empresas italianas
que desejem fazer negócios em qualquer outro país, inclusive
com a formação de joint venture.
- Há uma segunda entidade
de fomento que chama sace, que é muito importante, pois garante
o risco político. Suponhamos que uma empresa brasileira gaste
US$ 10 milhões em matéria-prima ou de maquinário
para pagar daqui a alguns anos. Se o Brasil declarar moratória,
a empresa paga, mas o país não permite que o pagamento
seja feito no exterior. Então, o sace protege o exportador italiano
contra o risco político. Já em uma relação
específica da Itália com o Brasil, não –
explica Polastri.
No Brasil, uma das iniciativas
do Governo que podem colaborar para atrair mais empreendimentos italianos
é a recente redução da garantia de investimento
estrangeiro no país de US$ 200 mil para US$ 50 mil.
- A Lei diz que US$ 50 mil não
é um valor rígido. Se tenho um projeto de U$ 30 mil, posso
investir, com permissão de estadia - assinala o adido comercial
Lívio Angeloni.
Há, contudo, quem acredite
que, mais que criar leis de incentivo, o desafio do brasileiro com o
mercado externo agora é de ordem cultural.
Mas para tudo há um remédio.
Segundo Di Luca, as 72 câmaras comerciais italianas espalhadas
no mundo, deveriam, de uma forma ou de outra, convencer os exportadores
das áreas onde atuam a conseguirem financiamentos aos compradores
extras deles, como os brasileiros, para poderem pagar em até
180 dias. A compra, explica, seria de baixo custo real, e evitaria perda
de dinheiro com estoque.
Um laço cultural
esquecido?
Enquanto
os empresários italianos buscam alternativas para a marca “Itália”,
na contramão, o governo brasileiro vem fazendo um esforço
para elevar a marca ”Brasil” no exterior, com direito a
logotipo e tudo. Andréa Matarazzo afirma que o receio de os italianos
investirem no Brasil surgiu quando estourou a crise econômica
na Argentina, em 2001. Para reverter isso, ele sugere o estímulo
da marca “Brasil” na Itália.
- Essas trocas devem ser mais estimuladas
até porque a Itália não conhece o Brasil, e é
importante que nosso país construa uma imagem lá fora.
Não há empresas nossas lá na Itália para
divulgarem nossa imagem, nosso cotidiano, nossa economia. Precisamos
de um trabalho de governo que atue nesse sentido: embaixadas, câmaras
de comércio, que mostrem as coisas modernas do Brasil. Eu me
lembro que uma vez levei os projetos dos aviões da Embraer e
das urnas eletrônicas para eles verem. Ficaram fascinados, voavam
sobre tecnologia brasileira e não sabiam. É preciso mostrar
que o Brasil é um país contemporâneo, apesar das
mazelas. Que ele está inserido no mundo globalizado. Todo o mundo
sabe que aqui tem praia bonita, mas ninguém sabe que também
tem hotéis maravilhosos, iguais aos da Flórida ou da Côte
D’Azur – recorda.
O ex-embaixador Matarazzo alerta
que o fato de o Brasil ter 25 milhões de oriundi não significa
que há um conhecimento sobre Itália e Brasil para além
da macarronada e da pizza:
- Poucos foram os imigrantes que
retornaram à Itália. Poucos se sentem italianos. E os
descendentes brasileiros, às vezes, nem conhecem a Itália.
Além disso, a mídia sobre o Brasil é negativa:
violência, sujeira, favela. Os pontos positivos giram em torno
do futebol e das praias, isso eles conhecem. O nosso olhar é
pior, pois o Brasil não conhece a Itália. Não podemos
avaliar somente o que nós mesmos pensamos, somos minoria. Pense
em 170 milhões de pessoas. Eu só conheci a Itália
quando estive lá, foi aí que notei que potencial eles
têm, conseguem unir desenvolvimento tecnológico, qualidade
de vida e tradição. O que é muito raro. E, ainda
assim, posso dizer que a imagem da Itália no Brasil é
melhor do que a imagem do Brasil na Itália. A própria
imigração deveria ser explorada pelo setor turístico.
Um italiano adoraria conhecer cidades construídas pelo seu próprio
povo, pois é um complemento à história de seu país:
o sul do Brasil e o interior se São Paulo, por exemplo, deveriam
receber muito mais turistas italianos do que recebem atualmente. Em
algumas localidades de Santa Catarina, ainda se pode encontrar comunidades
que falam o veneto tradicional, mais “puro” do que se fala
na Itália. Eu sempre digo que, para chamar a atenção,
é preciso mostrar o inusitado.
O que importa, porém, é
que Itália e Brasil, apesar de um movimento oscilante de aproximação
comercial, ainda podem explorar mais a capacidade empreendedora de ambos
lados do acordo. Basta sentarem à mesa e negociarem. Há
leis de incentivo para isso e, o que é mais essencial, um laço
cultural e histórico pouco comum em outros cantos do mundo e
ainda não aproveitado pelos dois países.