Carlos Lessa
Considero
decisiva a contribuição do imigrante italiano para a ocupação
do território brasileiro e difusão de padrões civilizatórios.
Minhas observações não têm o mérito
da novidade, porém nasceram de viagens e contatos intensos.
Começo pela Serra Gaúcha. São oitocentos mil habitantes
em 34 municípios: Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Veranópolis,
Garibaldi, Farroupilha, São Marcos, Flores da Cunha, Pinto Bandeira,
Ipê, Antônio Prado etc. Neles estão 511 vinícolas.
A produção regional de 250 milhões de litros/ano
(90% da produção brasileira) é ligada a aproximadamente
16 mil famílias.
A atividade teve início em 1815, com alemães que ocuparam
a parte baixa do Vale. Foi consolidada a partir de 1865 por imigrantes
italianos, nas encostas, que produziam para consumo próprio.
Aproximadamente 50% das uvas brasileiras são processadas. O RS
responde por 95% da uva processada. A Serra tem 31 mil hectares de vinhedos.
É uma atividade típica de pequena propriedade, com uso
intenso da mão de obra familiar (4 pessoas por propriedade).
Estima-se que a área média de vinhedos por propriedade
seja de 2 hectares. São 17 mil estabelecimentos rurais pouco
mecanizados, numa região de topografia acidentada.
Uma característica histórica dos vinhedos da Serra Gaúcha
é o cultivo de uvas americanas e híbridas, principalmente
a Isabel. No início do século XX, com a chegada dos irmãos
Mônaco, surgiram empresas produtoras de vinho: a Dreher e Salton,
em 1910; a Peterlongo, em 1913; a Cooperativa Aurora, em 1930. Em 2003,
a safra gaúcha foi de 380 milhões de quilos de uva. Em
2004, atingiu 578 milhões.
Quero me debruçar sobre a pioneira Aurora, fundada em 1931. A
linda contribuição italiana deu origem a 18 outras cooperativas
ligadas à Fecovinho. Tem como presidente Hermes Zaneti. Todas
as demais têm presidentes brasileiros com sobrenome italiano.
Na Áustria, Canadá, Finlândia e Israel, de 70 a
80% da população adulta participam de alguma cooperativa.
Na Bélgica, Noruega e França, de 60 a 50%. Nos EUA, Dinamarca,
Japão e Portugal, de 50 a 40%.No Brasil, somente 4%. Um padrão
civilizado escasso no Brasil é abundante na Serra Gaúcha.
A cooperativa é uma sociedade de pessoas que cooperam para produzir
um resultado; cada cooperado tem um voto e é remunerado de acordo
com o que produz. Sua preocupação com o lucro não
é a mesma de uma sociedade de capitais, e não tem o sócio
majoritário mandão. Pela cooperação, o pequeno
produtor participa de uma grande organização, que assume
o compromisso de receber toda a produção do associado
e, ao invés de distribuir lucros, fazer o retorno das sobras
de seus resultados.
Hoje, a Aurora conta com 1242 viticultores. Produz aproximadamente 10%
da uva gaúcha e se desdobra em vinhos de mesa – o mais
famoso é o Sangue de Boi, de uvas americanas. Produz vinhos finos
com a Vitis Vinífera (utiliza mais de 10 cepas). Faz magníficos
espumantes.
Dependem diretamente da Aurora, entre associados, funcionários
e respectivos familiares, quase 8000 pessoas. Está sempre em
busca de aperfeiçoamento. "Fazer vinho é um negócio
relativamente simples, só os primeiros 200 anos são difíceis",
ensina a Baronesa de Rotschild. A Aurora tem 75 anos, porém já
nos brindou com seu Milésimo 1999, um Bordeaux de primeira categoria.
Foi somente por volta de 1970, com o ingresso de empresas como Martini
e Rossi, Moet e Chandon, Maison Forrestier, Hublein e Almadén
que os vinhos da Serra cresceram em qualidade. As recém-chegadas
introduziram processos sofisticados de vitivinificação,
e os vinhos da Serra começaram a ser consumidos fora da região.
Os brasileiros são grandes bebedores de cerveja, mas consomem
apenas 2 litros de vinho habitante/ano. A França, 60. A Itália
58. Portugal, 56. A Argentina, 40 e o Uruguai 31. Até mesmo a
pobre Romênia, 29. A melhoria de qualidade impulsionará
o crescimento exponencial do consumo.
Quero sublinhar outra lição da Serra Gaúcha. Em
Bento Gonçalves, está o Instituto Brasileiro do Vinho
- Ibravin. São seus sócios fundadores a Fecovinho, a Comissão
Interestadual da Uva (Trabalhadores Rurais), a Agavi (Associação
Gaúcha de Vinicultores) e Uvibra (União Brasileira de
Vitinivinicultura). Participam o Governo do Rio Grande do Sul e a Associação
Brasileira de Enologia (Abe).
Não resisto a registrar o sobrenome dos dirigentes do instituto:
Riboldi, Debiasi, Gervasoni, Perrini, Cavagni, Valduga, Schiavenin,
Paviani, Salton. São brasileiros totalmente aclimatados, cooperando
pela civilização do vinho. Vejamos os primeiros nomes:
Zeferino, João Guerrino, Antônio Agostinho, Marcos Antônio,
Carlos Raimundo, Olir. Na amplidão do coquetel brasileiro, o
presidente da Abe tem o sobrenome Czarnobay. E é outro Antônio
Agostinho.
Não olharei os núcleos urbanos da Serra Gaúcha.
Todos conhecem o pólo industrial e o pólo universitário
de Caxias do Sul. Não falarei da fidelidade ao lugar, da Festa
da Uva nem da beleza dos Centros de Tradições Gaúchas.
Deixarei de lado a magnífica gastronomia que combinou o churrasco,
o galeto, a polenta, os embutidos, o chucrute – tudo regado a
vinho e cerveja. Vou saltar para o Sudoeste de Santa Catarina. Vou atrás
do impulso semeador dos filhos dos imigrantes italianos do século
XIX. Vou para Descanso.
O lugar na mata é sinalizado pelo repouso da Coluna Prestes em
1925. Quatro famílias se instalaram pioneiramente. Dez anos depois,
empresas colonizadoras vendiam lotes em linha sem estradas a famílias
vindas da Serra Gaúcha. Os pioneiros extraíram canela
para mobiliário e pinho para construção. Houve
uma corrida pelas terras de Descanso, entre 1943 e 1956, ano de fundação
do município. Listarei o sobrenome de dirigentes políticos
de lá: Piran, Saltonello, Pelissari, Roman, Faccio, Toral, Bido,
Ferlin, Panegalle, Mingore, Degrani, Basso, Povola, Cassul, Massune.
O sincretismo em Descanso recebeu o aporte de famílias polonesas
migrantes de primeira geração. Surgem Wronski, Petroski,
Graboski, Chechanovski, Koproski (de Casca, RS). A paróquia cristã
católica é dedicada a Santo Estanislau Kostka. O coquetel
na política é total: dirigentes descendentes de poloneses,
como Jacinski, de alemães, como Schirman, e um inequívoco
Lopes Brasiliano.
Os padrões de cooperação e civilização
em Descanso são comoventes e sintomáticos. Na base do
município, estão 3100 famílias rurais proprietárias,
de, em média, 17,4 hectares. Produzem milho, soja, trigo, feijão.
Têm alguma pecuária leiteira e granjas avícolas
e suinícolas. Em décadas passadas, foi comum as mulheres
alugarem uma terra onde, em conjunto, produziam hortifrutigranjeiros
e pequenos animais. Com isso reduziam os gastos monetários. Hoje,
cada vez mais, compram em supermercados. A fruticultura está
se convertendo em uma nova atividade importante.
Em 1949, num ato simbólico de integração, instalaram
seu Cristo Redentor, ícone do Rio de Janeiro. Em 1963, criaram
a Cooperativa Agropecuária Santa Lúcia. Desde 1970, dispõe
de um Sindicato de Empregadores e outro de Trabalhadores Rurais. Nos
fins de semana, muitos pescam, outros dão sustentação
aos corais. Têm uma rede de salões comunitários.
Sempre festas são realizadas com participação ampla
e cooperação da população. 100% é
alfabetizada – são 42 escolas municipais. Ninguém
passa fome. Toda a população usa calçado.
Os filhos dos gaúchos semearam Descanso. Em Mato Grosso do Sul
está Dourados, que replica Descanso. Diamantino, outro clone,
em Mato Grosso, quebra recordes de produção de soja. Pelos
sobrenomes, remontaríamos a Serra Gaúcha. Uma última
de Descanso: localizei na rodovia da Região dos Lagos, RJ, uma
churrascaria de beira de estrada que, além das guloseimas da
Serra, tem feijoada, goiabada com queijo minas e algum sushi e sashimi.
Seu dono, nascido em Descanso.
Carlos
Lessa é economista e ex-presidente do BNDES