Edição de fevereiro de 2001

Mino Carta
o homem que revela os podres do poder

Genovês de nascimento incerto, entre setembro de 1933 e fevereiro de 1934, Mino Carta é considerado um mito. Sua contribuição ao jornalismo brasileiro vai desde a fundação de várias publicações como Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, Quatro Rodas e Jornal da República, até o exemplo de atitude contestadora e de defesa da verdade factual na imprensa. "Os jornalistas brasileiros se orgulham de escrever com 50 palavras. Tudo pode ser dito em 30 linhas. Isso é uma vergonha! O jornalismo é o exercício do espírito crítico, ele deve fiscalizar o poder e não fazer parte dele", define Mino. Suas impressões sobre a história recente do Brasil foram impressas em "O Castelo da Âmbar", pela editora Record, lançado em dezembro. Nesse livro, que já vendeu 13 mil cópias, Mino desfia relações da imprensa com o poder e relata como seus companheiros se venderam e políticos, conhecidos do grande público, traíram princípios.

E quando critica, o jornalista italiano o faz com conhecimento de causa e, principalmente, com muita convicção. Não fosse assim, se calava diante de poderosos como, seu alvo preferido, o conterrâneo Roberto Civita. Contra o dono da Editora Abril e ex-patrão, Mino delata podres com raiva visceral. "Se o que eu digo desses pilantras fossem inverdades já teriam me processado, no entanto nem ao menos me desmentem". O jornalista, que iniciou sua carreira em 1950 cobrindo a Copa do Mundo para Il Messaggero, de Roma, diz que só continuou no jornalismo pelo Brasil. Pintor conceituado e brasileiro por opção, vê com pessimismo a situação político-social brasileira e sente saudades do tempo em que, mesmo com a ditadura, existia ao menos posições bem definidas.

Com um consistente sotaque italiano e entre risos abertos, Mino Carta, diretor da revista Carta Capital, conversou com Comunità sobre a imprensa brasileira, a situação social do país e de sua decepção com o novo cenário político italiano. Conhecido pelo seu estilo elegante de se vestir, o jornalista das antigas não abre mão de continuar exercendo a profissão de forma combativa e adianta que já está trabalhando nas próximas aventuras de Mercúrcio Parla, um jornalista nascido num outro país. Coincidência? Mino diz que não e afirma que não pretende dar descanso à sua olivetti studio tão cedo.

Comunità - Você fala que se tornou jornalista por causa do Brasil. Se estivesse na Itália acredita que esta seria a sua profissão?

Mino Carta - Acredito que não, mas também não posso afirmar categoricamente coisa alguma porque a história não se faz com "se". Mas eu acabei acreditando na profissão porque estando aqui, vivendo aqui uma ditadura fardada, me convenci que ser jornalista tinha alguma utilidade, alguma serventia para tentar impedir que a história fosse escrita pelos vencedores. Normalmente ela é escrita por eles, isto é claro, mas você como jornalista tem a chance de deixar para o futuro alguma anotação, alguma coisa que poderá, eventualmente, sobreviver à versão dos vencedores.

Comunità - Em "Castelo de Âmbar", você fala muito da imprensa comprometida com o poder, citando diversos exemplos dessa relação. Comparando com o período da ditadura, você acredita que naquela época as perspectivas eram melhores?

Carta - Na época da ditadura as coisas eram mais fáceis, de certo modo, pois você estava do lado dela ou contra ela. Então as definições eram muito simples. Hoje vivemos um momento em que a situação permite confusões maiores. Agora acho que a imprensa brasileira mostrou realmente o que ela é com o fim da ditadura, porque mostrou que serve automaticamente ao poder, porque ela faz parte do poder. E não vejo por aí grandes chances de uma redenção. Este é o destino da imprensa brasileira até o dia em que houver um abalo sísmico forte o suficiente para mudar a estrutura do poder, para mudar as relações, as correlações, enfim, para alterar o rumo da história. Enquanto não houver este abalo sísmico, o poder permanecerá na mão das mesmas pessoas e a imprensa continuará a ser o que é.

Comunità - É por isso que o senhor tem uma visão pessimista quanto ao futuro do país, em relação ao otimismo brasileiro?

Carta - Bom, o otimismo brasileiro é uma coisa meio mística, e, portanto, não pode ser encarado a partir da racionalidade; com racionali-dade. Aí não é razão, a razão não existe! O otimismo brasileiro é determinado simplesmente pela emoção e, portanto, ele deve ser analisado assim como você analisa a fé religiosa. É a mesma coisa. Este é o otimismo brasileiro. Agora, o pessimismo é um traço da inteligência, certamente. Você não consegue ser realista e encarar os fatos como eles são, à luz da razão, sem ser pessimista. O pessimismo é inerente ao exercício da inteligência. O pessimismo, pode ser entendido como ceticismo. A natureza humana tem suas falhas... Agora, eu sou muito otimista em relação a mim mesmo. Nunca esmoreço, nunca entrego os pontos. Eu vou em todas as bolas, a não ser que me atirem uma bala na cabeça. Mas, em relação ao país, francamente, eu não sou otimista.

Comunità - 2001 começa com uma onda de otimismo para a economia, que é refletido pela mídia através dos índices econômicos. Você acha que existe comprometimento nessa divulgação? Qual análise você faz desse início de milênio?

Carta - Sobre a imprensa brasileira e a mídia em geral essa é a demonstração de um teorema, pelo menos é o meu teorema. É um bando de pilantras que servem ao poder e escrevem umas besteiras. Nós somos os campeões mundiais de má distribuição de renda. Isso não vai mudar nada. Nosso PIB, mesmo bem distribuído, seria totalmente insuficiente para fazer um país moderno. Teríamos uns 3500 dólares de renda média per capita. A nossa moeda é uma ficção, não existe, não tem cursos. Você não troca o Real onde for, nem mesmo na Nigéria. Então esse é o Brasil. Tem uma população de analfabetos desesperados que não saíram da escravidão e os caras ainda acham que temos que ser otimistas e basta ser otimista para que as coisas dêem certo. Para piorar temos um oportunista na presidência da república.

Comunità - Você diz ser o MST a única coisa séria neste país no momento. De onde vem esta admiração e por quê?

Carta - Olha não é uma grande admiração, é um registro jornalístico. Quer dizer, o MST é um movimento que se esforça e luta por uma causa justa e o faz com o mínimo de organização, sem trair, ao meu ver, os interesses desses miseráveis que reivindicam apenas um pedacinho de terra para poder cultivar em um país onde 50% das terras está na mão de 1% da população. Dá para discutir essas coisas? É inacreditável que tenhamos que discutir essas coisas que são de uma evidência solar.

Comunità - Sua formação italiana foi importante à sua personalidade contestadora?

Carta - Eu acho que sou bastante italiano em tudo e por tudo, e tenho orgulho disso. Lamento apenas que neste momento, na Itália, exista um fantasma chamado Berlusconi (Forza Italia) que poderá eventualmente ganhar as próximas eleições. Isso realmente é uma demonstração de que a Itália atravessa um período terrível, não tanto do ponto de vista econômico. A Itália é uma sociedade do bem-estar, muito bem sucedida neste ponto de vista. Mas me parece que o bem-estar não trouxe para o cidadão a capacidade de raciocinar em torno das razões deste bem-estar. Na verdade, o bem-estar foi alcançado na Itália graças à presença de partidos de esquerda, que eram realmente partidos de esquerda, e de sindicatos, que eram realmente sindicatos. Graças à pressão política e a pressão sindical, os donos do poder tiveram de entregar os anéis. Houve uma distribuição melhor da renda e isso tornou a Itália uma sociedade do bem-estar. Foi isso que realmente contribuiu de forma decisiva para tanto. Agora, a Itália atravessa um momento grave, ao meu ver, por que a sociedade do bem-estar acredita que pode progredir com um tal de Berlusconi, o qual é um mafioso de gravata e de sapato lustroso.

Comunità - Você esteve presente nos dois países no período do pós-guerra. O que faltou para o Brasil chegar ao desenvolvimento econômico da Itália?

Carta - Acho que aí comparações não são possíveis. A Itália tem três mil anos de história nas costas e o Brasil é um país novo. A Itália é um país onde as mudanças, as miscigenações aconteceram há muito tempo, enquanto que aqui estamos vivendo ainda uma fase de acerto. Não sabemos que povo somos. Acho que nós não temos ainda uma nação na acepção correta do termo. Então acho que é um processo em andamento e não acho que são comparáveis. Agora, acredito que se tivéssemos vivido circunstâncias históricas diversas daquelas em que vivemos e tivéssemos tido um proletariado consciente da sua condição, com consciência de classe, nós teríamos tido partidos de esquerda verdadeiros, ao contrário dos que existem, e teríamos tido sindicatos realmente eficazes, em função da massa com a qual poderíamos contar e o destino teria sido outro. Infelizmente as circunstâncias históricas também determinaram esta situação; precipitaram esta situação em que vivemos. Nós, no fundo, até hoje não saímos da escravidão.

Comunità - Em um país onde há uma classe média forte essa organização não seria mais facilitada? Aqui, onde há um abismo social, a forma de organização italiana caberia?

Carta - Veja, acho que o que transformou um país como a Itália e outros países europeus foi o fato também de que havia um proletariado que tinha uma aspiração de virar classe média. Tinha uma aspiração com a consciência da sua classe, portanto estava disposta a lutar por isso e não aceitar as coisas como elas estavam, impostas. A nossa pequena classe média, na verdade, tem a aspiração de ser aristocracia e aqueles que deveriam ser proletários têm a pretensão de serem remediados, topam qualquer parada, e os miseráveis não têm sequer consciência da sua cidadania. A classe média na França fez a Revolução Francesa. A brasileira não vai fazer revolução alguma. O povo menos ainda. Então, ao meu ver, é este o problema, mas comparações entre Itália e Brasil são impossíveis, assim como outros países europeus, com um fardo de experiência, às vezes até muito trágicas, mas que aprenderam a viver. Nós ainda não aprendemos, e aqui, o poder é para poucos. A nossa sociedade é muito pouco complexa, você tem os ricos e os pobres.

Comunità - Há mais de trinta anos no Brasil, o que permanece da cultura italiana e o que de brasileiro começou a fazer parte da sua vida?

Carta - Eu sou um apaixonado pela Itália e, à medida que o tempo passa, sinto cada vez mais forte as raízes, mas por outro lado, eu fiz a escolha de viver aqui e, enfim, embora sem perder de vista a minha origem, eu acabei virando um brasileiro também. Agora, me sinto frequentemente uma pessoa deslocada, até porque sou incapaz de participar desse tolo otimismo. Sou incapaz de torcer como os brasileiros torcem. Entende? São coisas que tornam frequentemente a minha vida difícil e até às vezes dolorosa.

Comunità - Você participa desde a década de 50 na imprensa brasileira e pode ser considerado um dos principais nomes do jornalismo atual...

Carta - Agradeço a indicação para este posto.

Comunità - Você acha que a sua contribuição ao jornalismo brasileiro já foi dada?

Carta - Eu nunca pensei em dar uma contribuição (risos). Nunca pensei em ser um mestre de coisa alguma, eu pensei no país, pensei nos meus leitores. É isso que penso, não me preocupo em dar contribuição ao jornalismo brasileiro, mesmo porque acho o jornalismo brasileiro lamentável, muito ruim, mas excepcionalmente ruim. Aliás, Eric Robsbawn diz que o país de Gana é melhor que do o Brasil. Eu acho que ele está certo! E não há nenhuma razão para supor que a nossa imprensa seja melhor que a de Gana.

Comunità - No Castelo de Âmbar fica explícito o seu ressentimento com os Civita...

Carta - Ressentimento não, ressentimento não tem nada a ver! Eu quero expor a história como ela é. E, aliás, por que não me processam? Por que não me desmentem? Porque a história foi exatamente como eu a conto. Aquilo é verdade factual. Sabe qual a diferença entre a verdade factual e a que cada um carrega dentro de sí próprio? É como quando a revista Carta Capital fala do sr. Daniel Dantas e o seu Daniel Dantas fica quieto. Agora, trata-se de gente da pior qualidade, gente que está aqui para predar e para fazer com que o país permaneça nesta espécie de limbo trágico. Este é o destino da Editora Abril.

Comunità - Poderia nos falar um pouco mais sobre esse capítulo?

Carta - A personagem principal conta a história verdadeira de época, dos últimos dois anos em que vivi lá na Veja. A história é rigorosamente verdadeira. Olha, me ligou há pouco um grande empresário brasileiro, mas muito grande, e ele me disse o seguinte: ‘li o seu livro, gostei muito, achei ótimo e compartilho absolutamente com tudo, sua discrição do Roberto Civita bate exatamente com o que eu sempre pensei dele’.

Comunità - É interessante que isto aconteça justamente contra um connazionale...

Carta - Não é um connazionale! O Roberto Civita nunca gostou da Itália.

Comunità - Nunca gostou da Itália?

Carta - Não. Ele acha a Itália um paiseco. Ele gosta é dos Estados Unidos. Eles são judeus, e não vejo mal nenhum nisso, evidentemente. Se refugiaram nos EUA, antes que a guerra eclodisse, e fizeram muito bem em se deslocar, mas ele tem uma formação totalmente americana. Ele fala mal italiano com sotaque inglês, assim como fala mal português. Basta ler a cartinha que ele escreve na carta do editor da última veja (nº 1 de janeiro): é uma beleza. É um texto dele. Ele consegue sapecar três gerúndios na primeira oração. É um pobre diabo. Aliás a sogra dele, uma senhora muito simpática e interessante, se atirou do último andar do edifícil do hotel Cadoro, aqui em São Paulo, desesperada com o tratamento da família Civita em relação a ela.

Comunità - Você falou do limbo. Há um pouco do estilo dantesco em seu livro?

Carta - Dante? (risos) Não, espera aí! A história de Dante é uma Commedia à vida. Um extraordinário trabalho de valor estético e filosófico superior, uma espécie de balanço da Idade Média para preparar a Idade Moderna. O meu castelo de Âmbar é um esforço medíocre de um jornalista secundário.

Comunità - Já pensou em algum instante em voltar definitivamente para a Itália?

Carta - Em outros momentos de minha vida sim. Atualmente, sem dúvida não. Eu tive algumas oportunidades profissionais de voltar à Itália ainda na década de 60, mas logo aconteceu o golpe de 64 e eu achei que devia ficar aqui, pela dramaticidade do momento. Hoje em dia não tenho a menor dúvida de que meu lugar é esse.

Comunità - Você veio ao Brasil há cinqüenta anos...

Carta - Não. Vim para cá menino em 46 e depois voltei por quatro anos em 56, a trabalho. Depois voltei para cá em 60, e estou aqui desde 50. Vim com meu pai e voltei ao Brasil definitivamente em 60. Mas eu vou freqüentemente à Itália várias vezes ao ano e fui passar lá as festas de fim de ano.

Comunità - E o que o senhor aprecia da cozinha italiana, tem alguma receita em especial da sua região?

Carta - (risos) Eu gosto de tudo. Um prato é muito pouco. Há várias cozinhas regionais italianas, em todas há pratos absolutamente extraordinários...

Comunità - O senhor não quer se comprometer?

Carta - Não! (esbraveja) Não sou uma pessoa que tenha medo de se comprometer nunca! Sempre digo o que penso, mas seria muito difícil dizer: "eu prefiro este prato". Agora, se você quer saber, eu viveria todo dia a base de massas, mudando só os molhos. Massa para mim é uma coisa imbatível! (risos). Eu mesmo sei fazer a receita de seis maneiras diferentes.

Comunità - Você fala de uma amizade italiana com Delfim Netto. Como você define esse tipo de amizade mesmo com posições políticas tão diferentes?

Carta - Hoje em dia, veja, o Delfim e eu pensamos igual em muitas questões. Em relação à política econômica brasileira, por exemplo, hoje nós pensamos igualmente. Em relação à globalização e ao neoliberalismo, nós pensamos muito parecido. Houve tempos em que ele estava de um lado e eu estava de outro. Mas ele, de uma certa maneira, sempre me tratou com muito respeito. Isso se deve ao fato que ele via em mim um italiano! De muitos pontos de vista ele se considera um italiano também. Então ele sempre teve respeito a minha pessoa embora tivéssemos idéias opostas, em certo momento, pelo menos em relação a muita coisa.

Comunità - E quanto a seu hobby com a pintura...

Carta - A pintura não é um hobby! Para um cara que já vendeu mais de 300 telas, não pode ser um hobby.

Comunità - É uma paixão?

Carta - Não. É um trabalho. É um trabalho como outro. Eu já vendi mais de 300 telas em exposições em Londres, em Antuérpia em Milão, fiz três exposições no Museu de Arte Moderna de São Paulo, você acha que é um hobby?

Comunità - Mas esse trabalho estaria relacionado à sua formação italiana?

Carta - Eu gosto de pintar porque eu gosto de pintar, desde criança eu queria ser pintor, então certamente tem uma influência da Arte italiana. Meu pai me orientou muito, ele gostava de arte e era professor de história da Arte, além de ser jornalista. Ele estimulou em mim esta vontade. Eu trabalhei em Milão com o pintor Carlo Carrà, que é um dos maiores pintores italianos do século, mesmo que por um breve tempo.

Comunità - Sabemos que você dará uma continuação a Castelo de Âmbar. Poderia nos adiantar algo sobre esse futuro trabalho?

Carta - É uma retomada do personagem Mercúcio Parla que se mostra mais como indivíduo e cidadão que como um jornalista. Se trataria de um texto escrito na terceira pessoa porque Mercúcio Parla só escreveu aquilo que está publicado.

Comunità - Você ainda escreve com máquina de escrever?

Carta - Escrevo em minha olivetti studio.

Comunità - Não vai se render ao computador?

Carta - Não sei... (pausa), mas olha, até o momento o problema não é de rendição. O problema é que o computador me assusta de certa forma.

Comunità - Mas por quê?

Carta - Porque ele tem uma linguagem que não é a minha. É uma lacuna minha, eu sei que é. Isto demonstra apenas que sou um homem que tem seus limites.

Comunità - E por quanto tempo o jornalista Mino Carta vai continuar desafiando os poderosos em sua olivetti?

Carta - Isso parece que está nos designes da natureza (risos). Não cabe a mim dizer até quando. Acho que morrerei fazendo meu trabalho. Não vou parar. Enquanto tiver fôlego vou na bola.