Edição do mês de setembro 1996

Lan, o italiano que sabe traduzir o Rio

Aos 71 anos, Lan é considerado um dos maiores chargistas do mundo e escolheu o Rio para ganhar inspiração

Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini, tudo isso resumido em apenas três letras: Lan. Esse italiano nascido no ano de 1925 em Monte Varchi, próximo a Florença, é o mais fiel retratista dos costumes cariocas. Através de suas mãos surgem as situações mais respeitadas pelo povo do Rio e pelos brasileiros em geral: o futebol, o samba e a mulata.

Sua primeira caricatura profissional foi publicada em 1945 na revista Mundo Uruguaio, logo depois, acabou sendo contratado pelo jornal El País, de Montevidéu, onde criou fama através de charges de jogadores de futebol. Em 1952, procurando capas para a revista argentina El Hagar no Rio de Janeiro, Lan acaba sendo entrevistado pelo Última Hora. Samuel Wainer, proprietário, logo que viu um dos trabalhos do artista - uma caricatura do jogador Baltazar, o cabecinha de ouro do Corínthians, ídolo nacional - não resistiu chamá-lo para fazer parte da equipe do jornal e o chargista não teve dúvidas em aceitar. No jornal Última Hora, Lan fez a única caricatura que marcou um político para o resto da vida: O Corvo, personalizando Carlos Lacerda.

Também exerceu o jornalismo no semanário Flan, ao lado de Otto Lara Rezende, Vinícius de Moraes, Hélio Pellegrino e João Cabral de Melo Neto. Antes de ir para o Jornal do Brasil, em 1962, o desenhista trabalhou no jornal O Globo e no Estado de São Paulo. Sobre as charges políticas Lan afirma: "Estava me tornando um velho chato de tanto desenhar políticos, prefiro pintar minhas mulheres", declarou.

As misturas de nacionalidades fizeram de Lan um típico e bom malandro nos tempos da boêmia. Das rodas de intelectuais e companheiros que se reuniam às seis da tarde no bar Villarino, no centro da cidade, Lan guarda grande saudade. "O Rio de hoje continua lindo, mas é difícil enfrentar o dia-a-dia do carioca. O Rio antigo era uma cidade confortável, podia-se voltar às seis da manhã para casa sem correr nenhum risco, hoje, parece uma verdadeira prisão domiciliar. Esta é a maior incoerência que existe, pois é uma cidade que te abraça e te convida", queixa-se.

No ano passado, Lan recebeu várias homenagens marcando seus 70 anos de idade e 50 de pranchetas. Da Portela, ganhou uma ala com bonecos representando seus desenhos. O bloco carnavalesco Simpatia é Quase Amor desfilou pelas ruas de Ipanema com camisetas assinadas pelo artista e cantando parabéns para você. Várias exposições e outras homenagens foram realizadas ao longo do ano. O último reconhecimento prestado ao chargista foi neste mês de setembro em Teresina, no Piauí, onde estavam reunidos o governador do estado, o prefeito, amigos e muitos artistas, num dos mais importantes espaços culturais do país.

Nesta entrevista, descontraído e bem humorado, Lan conta ao COMUNITÀ um pouco mais da sua carreira e da vinda da sua família para o Brasil, faz suas observações sobre o futebol e caracteriza sua paixão pela América Latina, critica a política e declara ser o que ele chama de anarquista light, define o italiano e, acima de tudo, declara ser um apaixonado pela sua terra natal. Mas nem por isso, deixa passar em vão o "descaso dos diplomatas italianos".

Comunità Italiana - Como você veio parar no Brasil?

Lan - Meu pai veio para o Brasil contratado pela Sinfônica do Municipal de São Paulo, depois foi contratado pela Sinfônica de Montevidéu e ficamos sempre devido os contratos de meu pai, que era um excelente músico e gravou discos, inclusive, com Toscanini. Mas a minha formação é estritamente italiana com uma adaptação ao clima maravilhoso desta América Latina que adoro, como todo italiano, que radicado passa a se apaixonar pela terra onde está, é nossa característica.

Comunità italiana - Por que o Rio de Janeiro?

Lan - Primeiramente, temos que considerar que este é um país tropical, é uma cidade tropical, de cores vivas, de astral para cima. O calor e as praias, a beleza das mulheres, tudo isso, para nós italianos é uma mistura fundamental. Faz parte desta explosão de temperamento que nós temos, tanto na ira como na alegria. Nós somos explosivos: não temos estopim, temos espoleta, explodimos de amor, de alegria ou de raiva. Mas eu sinto muita saudade do Rio de quando eu conheci, em 1952 aquela era a verdadeira cidade maravilhosa.

Comunità Italiana - Por que a escolha da mulata como símbolo do seu trabalho?

Lan - A mulata é o tipo de mulher que mais se adapta ao meu estilo, que é cheio de curvas. O corpo da mulata é toda curva, é ritmo. Eu gosto das mulheres em geral: ruivas, morenas, crioulas, mulatas. Mas, sem dúvida, a mulata é um modelo ideal, ela reflete o Rio e me ajuda barbaridade por causa da cor.

Comunità Italiana - Como você avalia esses 51 anos de profissão?

Lan - Se voltasse atrás, voltaria a ser jornalista, voltaria a fazer tudo que fiz, certo ou errado. Não tenho arrependimento nenhum, isso é uma grande felicidade... ser livre para agir e, sobretudo, esse espírito libertário que sempre tive e é uma espécie de ser anarquista light. Mas não esse Anarquismo mal interpretado que é associado à baderna e à falta de respeito.

Comunità Italiana - Mas, e como jornalista...

Lan - Graças a Deus, eu sempre fui requisitado pelos maiores jornais de onde estive. Começei no jornal El País, de Montevidéu, depois fui para a grande imprensa argentina, onde trabalhei em várias publicações e, em 1952, de passagem pelo Rio, fui chamado pelo Última Hora e não pensei duas vezes em aceitar, pois já estava gostando muito do Rio. Mas, tenho trabalhos publicados em várias partes do mundo e já fui considerado, na Inglaterra, dentre 57 artistas, um dos cinco melhores. E, apesar disso, o italianinho aqui, nunca foi lembrado pela Embaixada ou pelo Consulado italiano.

Comunità Italiana - Isso seria mágoa?

Lan - Sim, pois eu tenho muito orgulho de ser italiano. Em todas as entrevistas eu faço questão de ressaltar o meu país de origem. Já fiz exposições na Espanha, França, Suiça, Inglaterra, Alemanha, mas da Itália nunca recebí sequer um convite. Esse é um dos motivos pelo qual eu não gosto dos diplomatas: eles não querem nem saber o que está acontecendo com os seus compatriotas. Quantos dos velhos imigrantes receberam algum tipo de reconhecimento do Consulado ou da Embaixada italiana?

Comunità Italiana - Você acha que o humor marca a sua personalidade?

Lan - Nessa profissão você tem que nascer com o jeitinho, você não improvisa. É ver o mundo sempre de uma maneira melhor e tentar desdramatizá-lo. Deixar o leitor brincar com a verdade. Eu costumo dizer que a charge é uma paulada, porque ela mexe com o ridículo das pessoas. Se você quer destruir uma pessoa ridicularize-a ao extremo, como fez Chaplin com Hitler e Mussolini. A charge é pior do que um editorial de fundo de um jornal.

Comunità Italiana - Mas você parou de fazer charges políticas e atualmente não parece ridicularizar, ao contrário, usa formas graciosas.

Lan - Eu discordo da definição que os dicionários dão à caricatura - arte de destacar o ridículo das pessoas. Este é um conceito arcaico, um conceito renascentista que já foi superado desde o século passado, onde a caricatura passou a ter uma importância muito maior se aprofundando na personalidade. A mim não interessa o narigão das pessoas, me interessa é a personalidade. O narigão seria utilizado para provocar um certo trauma num administrador, por exemplo. Mas como eu poderia fazer uma caricatura da Sophia Loren feia, ridícula?

Comunità Italiana - Uma charge diz mais do que mil palavras?

Lan - A minha vida toda foi dedicada à caricatura e nem sequer eu parti para o mercado de artes plásticas. A caricatura, até como arte figurativa, é a única destinada a perdurar enquanto existir um ser-humano na Terra. Eu diria que 100% dos leitores observam uma charge publicada na página editorial ou na primeira página de um jornal, e muitos deles não lêem o próprio editorial.

Comunità Italiana - Você trabalha há 33 anos num dos maiores jornais do país. Como você define o JB?

Lan - Eu já recebi várias propostas de outros jornais e revistas, mas fico no JB por uma razão: por ser, apesar de todas as crises que já enfrentou, o de maior credibilidade neste país. Além disso, é um jornal que abrange o país inteiro e é, também, o jornal mais levado a sério em Brasília, a exemplo do Le Monde, na França. A matéria prima do JB é a opinião, a opinião feita com muita coerência; isso tem a ver com minhas idéias. Eu, a imprensa devo tudo. Adoro ser jornalista e as vezes sinto até saudade do cheiro da redação, dos tic-tacs das máquinas, que foram substituídas pelos computadores e aí veio um silêncio absoluto.

Comunità Italiana - Como você observa a entrada do computador na composição das charges?

Lan - Eu não discuto a utilidade do computador numa redação de jornal, é fundamental. Sou contra as chages feitas nele, porque a personalidade do artista some. No computador você deforma uma fotografia e pronto. Isso nivela todos os desenhistas. Hoje você confunde o Ique com o Chico Caruso e artistas menores, porque esses são grandes.

Comunità Italiana - Mas, vamos falar de futebol. Por que o flamengo?

Lan - Agora você tocou num ponto importante: por que torço para o futebol latino-americano? É evidente que uma parte do meu coração é ainda da Azzurra. Quando dança o Brasil, dança a Argentina, dança o Uruguai, aí sou Azzurra. Isso porque a Itália modificou o futebol. No campeonato italiano você não torce para um time, torce para estrelas que recebem muita grana. A Itália foi a pioneira em investir milhões em atletas do mundo todo. No Brasil, na Argentina e no Uruguai, nascem mais craques em um mês do que em cinco anos na Europa. Hoje, é o espetáculo que interessa, os grandes astros em campo. Agora Ronaldinho ganha 40 milhões no Barcelona, amanhã vai jogar, ou ganhar, em outro clube. Eu, que sou da época do Zico, que fez sua carreira no Flamengo e é doente como eu por esse time; da época do Pelé, que fez a sua carreira no Santos; do Garrincha e do Nilton Santos, que fizeram carreira no Botafogo, não gosto de ver times misturados e, todo esse critério, foi imposto pelo capital. Mas, hoje, a Itália sofre as conseqüências, como na disputa do Tetra, que poderia ter sido dela. Na Copa, o técnico italiano foi obrigado a colocar dois jogadores machucados, Baggio e Barese, isso porque a Itália mal consegue juntar 11 titulares, enquanto o Brasil coloca 22 craques. Isso acontece porque os times estão cheios de estrangeiros.

Comunità Italiana - O que mais marcou seus 70 anos?

Lan - É difícil... mas, no ano passado, quando eu completei 50 anos de prancheta e 70 de idade, tive uma emoção muito gostosa. Um bloco carnavalesco em Ipanema, chamado Simpatia é Quase Amor, me prestou uma homenagem emocionante: mais de cinco mil pessoas, na praça, cantando parabéns para você. Confesso que chorei...

Comunità Italiana - E o desfile no próximo carnaval, da Vizinha Faladeira?!

Lan - Agora, vou até ser enredo da Vizinha Faladeira, que é uma das mais tradicionais escolas do Rio. Enfim, eu tenho recebido tanto carinho. A Câmara Municipal me deu o título de "Cidadão Carioca"; o Globo, que é rival do JB, também me deu a cidadania carioca; Petrópolis me deu a cidadania petropolitana, é bom saber que a sua vida não passou em vão. E, em todos os lugares, boto o meu orgulho de ser italiano na frente e tento honrar o meu país, porque, acima de tudo, sou toscano, sou de uma terra de artistas, entre Arezzo e Firenze; quero continuar a tradição.