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Leonardo Boff - novembro de 2001

'Não existe guerra justa'

O "Right Livelihood" de 2001, prêmio também conhecido como Nobel Alternativo da Paz, teve um ganhador brasileiro. Um dos teólogos a pregar o cuidado para com a legião de excluídos que corresponde a 2/3 da população do planeta, Leonardo Boff foi homenageado por ter dado contribuições importantes para a humanidade, principalmente neste momento difícil.
Ex-frade franciscano, ele desligou-se da hierarquia católica depois de ter sofrido restrições por parte do Vaticano. Autor de mais de 60 livros, criou polêmica com os seus estudos sobre a Teologia da Libertação, a qual faz opção pelos pobres. Suas idéias foram consideradas neomarxistas e, segundo a Igreja central, inadequadas, por quererem adaptar a fé cristã à realidade dos países subdesenvolvidos.
Desde 1972, quando foi publicado "Jesus Cristo libertador", seus textos vinham sendo contestados, tendo sido convocado diversas vezes pelo Vaticano para prestar esclarecimentos. Mas foi em 1984 que ele sofreu um processo doutrinário do ex-Santo Ofício, por causa de seu livro "Igreja, carisma e poder", no qual estão reunidos artigos questionando e criticando a Igreja e sua estrutura de poder, que nunca foi defendida por Cristo. Para Boff, a Igreja Católica precisaria se "converter" à palavra pregada por Jesus.
Sentou-se na cadeira em que foram julgados Giordano Bruno e Galileu Galilei durante a Inquisição. Foi interpelado pelo cardeal-chefe do Vaticano J. Ratzinger, a quem ele se refere como fundamentalista. Em 1985, recebeu sua punição: foi-lhe imposto um ano de silêncio e a proibição de exercer suas atividades no campo religioso.
O Vaticano, pressionado com manifestações de todo o mundo por tomar medidas tão arbitrárias quanto as dos militares ditadores, suspendeu o castigo em 1986. Em 1992, tendo recebido outro comunicado de que seria novamente punido, Leonardo Boff pediu o próprio desligamento.
Atualmente, ministra palestras e aulas no mundo inteiro, sendo professor-visitante em diversas universidades na Europa. É doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim e em Teologia pela Universidade de Lund, na Suíça.
Sobre a falta de paz, Boff diz condenar atos terroristas que vitimam inocentes no mundo, mas também é terminantemente contra as atuais intervenções militares norte-americanas. Ele classifica como terroristas também os danos, sanções e restrições que os países ricos há muito impõem ao terceiro-mundo. Discorda de que só haja duas alternativas, contra ou a favor da "democracia", e sugere o caminho do diálogo incansável, baseado na compreensão e no respeito às diferenças.

Comunità Italiana - No livro que lançou recentemente, o sr. faz distinção entre religiosidade e espiritualidade. Como o sr. analisaria a fé dos grupos muçulmanos que vêem nos atos terroristas uma maneira de fazer justiça?

Leonardo Boff - Todos os fundamentalismos são guerreiros. Fundamentalista é a pessoa que afirma seu ponto de vista como o único verdadeiro. Quem diz ser o portador exclusivo da verdade, está condenado à intolerância contra outros grupos, portadores de outros pontos de vista. Há uma forte corrente fundamentalista em todas as religiões atuais, também no cristianismo e no próprio Vaticano. O caso muçulmano é singular. Não se faz uma distinção entre o político e o religioso. O Corão é simultaneamente livro sagrado e constituição do Estado. Atacar um país muçulmano não é apenas atacar suas políticas, mas atacar sua religião e seu livro de revelação que legitima e sustenta esse Estado. Não devemos olvidar que o Ocidente, hegemonizado pelos USA, trataram mal nos últimos 50 anos todo Oriente Médio de fé muçulmana. Em razão do suprimento de petróleo, sangue do sistema mundial, fizeram alianças espúrias com os emires e reis. Estes são despóticos, sequer possuem constituição. Embora riquíssimos, mantém o povo na pobreza. Os ataques sistemáticos aos palestinos por Israel, a guerra contra o Irã e o Iraque acumularam ressentimentos, amargura, revolta. Para o muçulmano piedoso o Ocidente é ateu, secularista, materialista, explorador, inimigo de Allah. A partir deste caldo cultural amadureceu a rede do terror voltado contra o Ocidente e os USA, uma forma de dar o troco pelo terror que receberam.

CI - Em declarações gravadas pela TV al Jazeera, Osama Bin Laden disse que o povo afegão suportaria um ataque norte-americano, já que vem suportando, há anos, a miséria naquele país devastado por guerras anteriores. Como o sr. acha que os países mais ricos deveriam se posicionar diante da pobreza do terceiro mundo?

Boff - Um dos piores fundamentalismos é aquele do neoliberalismo e a lógica do mercado mundial. Propaga-se que para esse modo de produção e para esse tipo de ordem mundial não há alternativas. Todos devem fazer os ajustes estruturais para entrar nessa fase histórica, considerada por alguns teóricos, como a final da humanidade. Ora, essa ordem com a globalização econômico-financeira e suas instituições como o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio devastaram economias nacionais, pauperizaram a maioria dos países retardatários e produziram os índices de maior pobreza mundial que se tem notícia. Há em todo mundo revolta contra o tipo de globalização que é só competitiva e nada cooperativa. A solução é secundar outro tipo de globalização que passe pela política, pela ética, pelos direitos humanos e pelos valores espirituais da humanidade. Importa respeitar as diferenças culturais e os vários modos de produção para atender às demandas de todas as regiões. Hoje há um crescimento fantástico, mas absolutamente injusto porque pessimamente distribuído. Pouco mais de 220 famílias controlam 80% de toda a riqueza mundial. Tal sistuação mostra o nível de barbárie a que chegamos. O encaminhamento passa pelo gerenciamento mundial dos recursos escassos da Terra para que todos, inclusive os demais seres vivos, tenham o suficiente, salvaguardemos a integridade do Planeta e garantamos a continuidade da biosfera. A máquina de morte já montada pelas potências militaristas podem destruir várias vezes a Terra e impossibilitar o projeto planetário humano. Estamos numa encruzilhada: ou socializamos o pouco que temos ou todos vamos ao encontro do pior. A resposta ao terrorismo dos desesperados não é outro terrorismo tecnológico ainda mais devastador, mas se encontra no diálogo, na negociação, nos investimentos maciços na qualidade de vida humana em todo o mundo. Pelo menos realizar sem exceção a utopia mínima de propiciar a cada habitante do planeta que coma uma vez ao dia.

CI - Os teólogos da libertação chegaram à conclusão de que o sistema atual gerava o subdesenvolvimento. O sr. acha que, depois do episódio do World Trade Center, mudanças que diminuam o abismo entre ricos e pobres poderão efetivamente ocorrer? Acha possível que haja uma maior conscientização?

Boff - Para mim, o antentado terrorista de 11 de setembro marca a virada na direção do novo paradigma planetário e humanístico. Os prédios atingidos enviam uma mensagem: não se poderá mais construir a civilização mundial com o tipo de economia dominante (simbolizada pelo World Trade Center), com o tipo de máquina de morte montada (Pentágono) e com o tipo de política arrogante e produtora de imensas exclusões (Casa Branca poupada porque o avião caiu antes). Para mim começou a ruir o sistema e a cultura do capital. Eles são demasiadamente destrutivos. O capitalismo explora a força de trabalho, expolia nações e devasta a natureza. Ele se mostra ecocida e geocida, vale dizer, ele pode nos levar ao destino dos dinossauros. Agora começará um novo estado de consciência: devemos discutir todos juntos o destino comum da humanidade e da Terra, devemos entabular diálogos interculturais e inter-religiosos sistemáticos, devemos criar as instituições globais que vão gerenciar a Terra para todos e para a inteira comunidade de vida que inclui todos os seres vivos e sua infra-estrutura físico-química. Desta vez não há uma arca de Noé que possa salvar alguns e deixar perecer os demais. Devemos nos salvar todos juntos. Para mim, esse é o conteúdo das conversas no mundo inteiro, para além do terror que os USA e seus aliados estão levando ao Afeganistão.

CI - A Itália, assim como vários outros países europeus, vivencia atualmente um clima de tensão. Cientistas políticos acreditam que o Vaticano é um alvo em potencial. Que atitudes tomadas pela Igreja poderiam ter provocado tal situação?

Boff - Desconheço as ameaças que pesam sobre o Vaticano. O que posso afirmar é que a tendência dominante no Vaticano sob este pontificado é altamente fundamentalista. Um Cardeal como J. Ratzinger, que publica um documento oficial no qual diz que a única Igreja verdadeira é a Igreja Católica e as demais nem sequer igrejas são, que a única religião legítima é a católica e as demais nem fé possuem, são apenas convicções e crenças, comete terrorismo religioso, além de ser grave erro teológico. Essa atitude e tais doutrinas favorecem a guerra entre as religiões. É sabido que para se ter paz política deve-se buscar simultaneamente a paz religiosa. E esta só se consegue pelo diálogo, a aceitação da diferença e a valorização de todos os caminhos espirituais como legítimos caminhos para Deus. Cabe lembrar que todas as zonas de conflito hoje se fundam em questões religiosas e teológicas. Os analistas das políticas mundiais dos países hegemônicos são tão secularistas e obscurantistas que nem sequer incluem tal dado em suas análises. Por isso que erram rotundamente em todas as suas medidas políticas.

CI - Apesar de descendente de italiano, o sr. parece ter uma ligação maior com a Alemanha. Os problemas com o Vaticano de alguma maneira inibiram uma atuação mais ampla na Itália?

Boff - Eu sou brasileiro e não tenho nada a ver diretamente nem com a Itália nem com a Alemanha. Vou com freqüência a esses países em razão de palestras e debates. Tenho sido professor visitante em Basel (Suiça) Salamanca (Espanha) e Heidelberg (Alemanha), mas sempre dentro da perspectiva típica da teologia da libertação que denuncia a dominação que as potências européias levaram às nossas terras. Foram os paises do Norte que invadiram o sul, colonizaram meio-mundo, cometerem etnocídios inomináveis, levaram o terror às populações. Elas nunca foram atacadas a partir do Sul. O ato terrorista nos USA possui essa singularidade: é a primeira vez que atores do sul atacam o Norte nos seus ícones mais caros. Ficamos todos perplexos, somos solidários com as vítimas, mas para um teólogo, há aí também um juízo de Deus sobre um tipo de civilização que foi inumana e bárbara para a maioria da humanidade. E o cristianismo foi cúmplice desta tragédia que significou o colonialismo e o imperialismo.

CI - Que mensagem o sr., agraciado com um prêmio internacional da paz, daria para o mundo atualmente em guerra?

Boff - Não existe guerra justa, como ainda se defende no Novo Catecismo da Igreja Católica, nem guerra santa como querem os muçulmanos. Toda guerra é perversa e contrária à vida e ao desígnio do Criador. As guerras nascem porque os seres humanos estabelecem entre si e entre os povos a concorrência em vez da cooperação, a vontade de dominar os outros porque cada qual se julga melhor. É o cuidado de uns para com os outros, o cuidado para com a Casa Comum, a Terra, o cuidado para com a vida, a começar pelas mais ameaçadas, que tira as incompreensões, desarma os preconceitos e cria laços de confiança e de fraternidade. Por isso postulo uma ética e uma pedagogia do cuidado essencial para com tudo o que nos cerca, pois é ele que salvará a vida e garantirá um futuro de esperança para a humanidade e para a Terra.
Como diz o poeta cantador: tudo o que amamos, também cuidamos... e há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto...