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Luís Boognesi e Laís Bodanzky - janeiro de 2001

Cinema: Investimento italiano viabiliza produção brasileira

São muitos os que apostam nas relações entre Brasil e Itália, principalmente porque as experiências de intercâmbio entre os dois países, nas mais diversas áreas, não poucas vezes renderam bons frutos. No cinema, um exemplo recente é Bicho de Sete Cabeças, o longa-metragem dirigido por Laís Bodanzky. A história, inspirada no livro "O Canto dos Malditos", de Austregésilo Carrano, além de mostrar a realidade do falido sistema de manicômios brasileiro, relata a falta de diálogo entre pais e filhos. Por seu tema atual, tão presente em vários lares brasileiros, o filme conquistou os prêmios mais importantes dos principais festivais brasileiros, foi consagrado pela crítica e aclamado nos festivais internacionais.
O caminho até o sucesso não foi fácil, como muitas vezes não é, em se tratando de cinema brasileiro. O apoio da Itália foi fundamental. Após três anos e meio de captação de verba, apenas 45% do orçamento de R$ 1,5 milhão havia sido garantido. Foi quando o produtor Marco Müller, diretor da Fabbrica Cinema, da Benneton, veio para o Brasil integrar o júri da Mostra Internacional de São Paulo. Durante a ocasião, ele buscava projetos para investir. Leu vários roteiros brasileiros, entre eles o Bicho de Sete Cabeças. O produtor, então entrou em contato com Laís Bodanzky e Luís Bolognesi, roteirista do filme. Depois de se inteirar em relação ao andamento do projeto, ofereceu toda a parte de co-produção e finalização na Itália, e mais US$ 150 mil para que o trabalho de filmagem pudesse ter início.
Bodanzky e Bolognesi, que além de casados são também sócios na produtora Buriti Filmes, passaram seis meses na Itália, primeiramente em Treviso e depois em Roma, nos estúdios do Cinecittà. Atualmente, dedicam-se a um projeto de exibição itinerante de filmes brasileiros, em parceria com a TV Cultura.

Comunità Italiana - Como você vê essa iniciativa de um italiano investindo no cinema brasileiro?

Luís Bolognesi - Acho que isso significa principalmente que o cinema brasileiro está muito maduro e está com uma imagem muito boa lá fora. Na hora em que os produtores europeus e americanos começam a investir no cinema brasileiro, a trazer dólares para cá, dá-se um sinal de maturidade grande, porque isso é bom para qualquer indústria do mundo. Qualquer uma que consiga trazer dinheiro de fora se aproxima de uma situação ideal, porque está enriquecendo a economia do país e se solidificando independentemente. Isso começa a acontecer com vários filmes brasileiros. O Marco Müller veio aqui porque ele estava farejando que existia um cinema em que valia a pena investir.

Comunità - O Brasil congrega profissionais competentes nessa área, mesmo assim é difícil a obtenção de recursos. Como você analisa o cenário do investimento nacional?

Bolognesi - Acho que já estivemos num quadro de captação na área de cultura muito pior. Com a lei do audiovisual, as coisas melhoraram e a indústria se reergueu. Mas ainda existem várias coisas que precisam ser modificadas para que a cultura do país tenha maior acesso e para que a gente possa estar distribuindo e fazendo os filmes acontecerem. Temos que lutar para conseguir mais apoio para a área de cultura porque na verdade o cinema fica bem no entroncamento entre cultura e indústria. Por um lado, o cinema concentra várias culturas do país, ou seja, você joga com a música, com o teatro, com as artes plásticas. O cinema é uma congregação de todas as áreas e por isso fortifica muito a cultura de um país. Por outro lado, é uma indústria que gera muitos empregos. Nesse sentido, acho que ainda falta, da parte do governo brasileiro, uma política cultural e realmente de proteção para que a gente não seja massacrado pela indústria de Hollywood. Nesse ponto a Ancine, uma agência de proteção ao cinema que foi criada pela casa civil da república, é um avanço. O quadro não é fácil, mas as coisas estão evoluindo e o cinema brasileiro está andando para frente também na área de patrocínio.

Comunità - Será mais fácil para os seus projetos acontecerem?

Bolognesi - Não vejo no curto prazo uma situação muito facilitadora. Vai depender muito da Ancine conseguir recursos e botar em prática o que está desenhado. Existem muitos lobbies contra o sucesso da Ancine. A indústria americana de cinema, as televisões... É uma luta que está sendo travada neste momento com o apoio da casa da república, para fortalecer ainda mais a produção e criar mais mecanismos de acesso à produção brasileira.

Comunità - A França é famosa por incentivar de maneira mais contundente a sua produção. Você, que esteve recentemente na França, onde inclusive o Bicho de Sete Cabeças recebeu o prêmio de melhor filme do Festival de Biarritz, o que acha desse tipo de incentivo? Já que se falou aqui sobre a indústria de Hollywood, queria saber se você acha que deveria haver mais restrições quanto à entrada do cinema americano no país?

Bolognesi - Acho que o mercado precisava criar alguns incentivos para a produção local, não proibir um produto estrangeiro. Tem que ter o direito de entrar, mas tem que haver uma taxação no lucro deles que seja revertida para o cinema brasileiro. Porquê? Porque o filme deles já vem pago dos EUA, e eles praticam um preço aqui no Brasil mais barato do que o preço praticado no ingresso americano. Isso é proibido pelo acordo internacional do comércio. A indústria americana de cinema nem sequer respeita o próprio acordo da OMC, que diz que você não pode praticar um preço no país de terceiros abaixo do que você pratica no seu país. Eles vêm com uma política muito agressiva. É aí que a França cria um paradigma de defesa do produto nacional, sem ufanismo e sem um protecionismo exacerbado, de modo a encontrar um ponto de equilíbrio que permita que a indústria local sobreviva também. Os franceses não impedem a produção americana de entrar, eles criam mecanismos que facilitam, favorecem a indústria local. Acho que esse é o jogo. Na França, como em todos os lugares do mundo, a indústria de Hollywood tem um mercado gigantesco. O que vem acontecendo é que uma determinada política de valorização do cinema local francês começou a obter muito sucesso nos últimos três anos. Os americanos tinham 90% do mercado de cinema. Em três ou quatro anos, os franceses aumentaram sua participação no mercado de 10 para 50%. E não houve nenhum trauma. Eles não feriram nenhum acordo comercial e nem puniram os americanos. Enquanto 50% do mercado da França é do cinema local, no Brasil nós temos 10%. Acho que o modelo francês vai ser exportado para muitos países.

Comunità - E o cinema italiano?

Bolognesi - O cinema italiano tem uma história muito parecida com a do cinema brasileiro. Ele foi muito popular em seu próprio país nos anos 50, 60 e 70. Ao longo dos anos 70, a Itália fazia muitas comédias populares, como o Brasil fazia a pornô chanchada, tinha um gênero de comédia popular na Itália que era hegemônico, batia os filmes de Hollywood. Mas ao longo do final dos anos 70, exatamente como no Brasil, esse mercado local foi despencando e o gosto do público foi indo muito mais na direção de Hollywood. Entre os anos 80 e 90, o cinema italiano desapareceu praticamente. Ficou mais restrito aos filmes de arte, Ettore Scola, gente desse naipe que levava o cinema italiano com glamour para os festivais internacionais, mas não impactavam o mercado italiano. Mas na Itália também, de três ou quatro anos para cá, começaram a surgir filmes, novamente populares, novamente campeões de bilheteria, e o cinema italiano neste momento está vivendo um boom. Você teve um filme como o "Pani Tulipani", no ano passado, que foi um campeão de bilheteria, coisa que há muitos anos não acontecia. Você tem na seqüência, aquele que ganhou em Veneza o prêmio de melhor roteiro e também teve um resultado de público muito grande na Itália. Recentemente, o cinema italiano ganhou o prêmio principal do festival de Cannes, com Nanni Moreti, acabou de ganhar o prêmio principal do festival de Locardo, que é um dos principais festivais da Europa, ganhou vários prêmios no festival de Veneza... O cinema italiano está num momento muito forte. Você tem também o Begnini, por exemplo, que ganhou dois Oscars. O filme dele foi visto por 30 milhões de pessoas no mundo! O cinema italiano vive um renascimento, muito parecido com o cinema brasileiro. Isso é maravilhoso, porque é importante que o cinema local renasça, e estou sentindo que este é um fenômeno mundial. Apesar da indústria de Hollywood estar lutando para massacrar o cinema local, estão perdendo esta batalha. Isso é bom para todo mundo. Eles vão ter sempre metade do mercado porque são bons no que fazem. Mas vão ter a metade, não 90%.

Comunità - No tempo em que o cinema local italiano ficou adormecido isto se deveu a uma menor aceitação do público ou a um volume menor de investimento?

Bolognesi - Acho que foi uma combinação das duas coisas. A indústria de Hollywood deu uma modernizada e começou a apresentar um gênero que só eles podem fazer, com muitos efeitos especiais, com muita pirotecnia digital e que os outros cinemas locais na época não conseguiam acompanhar. Teve um momento em que o espectador só queria ver aquilo. Agora acho que está passando essa fase, está se dando mais valor para o conteúdo, para a narrativa, para a história. E isso está democratizando o gosto do público novamente. Claro que não conheço os detalhes de como caíram os incentivos lá na Itália. Sei que o cinema italiano trabalha com um incentivo fiscal do governo, também trabalha com uma política de subsídios que está forte no momento.

Comunità - Fale um pouco sobre sua descendência italiana.

Bolognesi - Eu sou bisneto de italianos. O Bolognesi vem de Rovigo, no Vêneto. A minha família emigrou nos últimos anos do século 19. Vieram do Vêneto e se instalaram na Região de Itu e Tietê.

Comunità - Você cultiva algum traço da cultura italiana?

Bolognesi - Eu falo italiano e já tinha morado na Itália antes. No ano passado eu morei seis meses com a Laís finalizando o filme. Mas antes disso, há 10 anos atrás, eu tinha passado sete meses lá, estudando e trabalhando.

Comunità - Estudando cinema?

Bolognesi - Estudei a língua e trabalhei na época para poder bancar os estudos. Trabalhei de pedreiro, lava-prato. Viajei a Itália como aquele velho mochileiro, arrumando emprego aqui e ali, e investindo um pouquinho no curso de línguas.

Comunità - Mas o interesse pela Itália começou pela família ou...

Bolognesi - Não. O interesse é porque, como roteirista, tenho interesse em todas as culturas, em viajar, em conhecer o mundo. A Itália é um berço de cultura incrível e já que eu estava lá, era uma oportunidade imensa de dominar uma língua a mais. Acabou sendo fundamental no ano passado, porque nós trabalhamos finalizando o filme com profissionais italianos o tempo todo. Foi uma ferramenta fundamental na comunicação com o montador, o editor de som, com os produtores italianos. Tenho certeza que facilitou muito no dia em que o Marco Müller veio para falar com a gente e descobriu que eu falava italiano.

Comunità - Laís, quais são os novos projetos da Buriti Filmes?

Laís Bodanzky - Na verdade estamos ainda em muita sintonia com o "Bicho". O filme está participando de vários festivais. Estamos também fazendo captação para um projeto que a gente tem aqui na Buriti Filmes que é uma série de documentários para a televisão.

Comunità - Vocês estão com uma parceria com a TV Cultura, não?

Bodanzky - Sim. E a gente está fazendo captação para um projeto de exibição itinerante de filmes brasileiros. Esse projeto já existe há muito tempo e, recentemente, a gente vem fazendo sessões com o Bicho de Sete Cabeças, sessões bem diferentes, com debates...

Comunità - Houve dificuldade para distribuir o filme pelo Brasil?

Bodanzky - O país é muito grande. A estratégia escolhida foi a de não fazer um lançamento no Brasil de uma vez só, mas trabalhando cada praça com calma.

Comunità - Fica mais fácil agora, depois do B7C, fazer captação?

Bodanzky - Somos muito mais respeitados. As pessoas nos recebem. Antes, até apresentar o projeto era mais difícil. Agora existe uma abertura maior. O caminho que o B7C fez foi muito sério e muito divulgado. Isso é muito importante. Estou muito otimista.

Comunità - A Fabbrica investe em projetos de jovens do mundo inteiro. Como funciona esse mecanismo?

Bodanzky - Trabalhei na Fabbrica Cinema, que é um pouquinho diferente do resto. Mas os projetos da Fabbrica englobam diversas áreas: artes gráficas, fotografia, música... A característica do trabalho da Fabbrica é trabalhar com jovens do mundo inteiro, fazer uma grande salada de cultura, e sempre com pessoas com olhares ousados. Quem deu um pouco essa cara foi o Toscani, que hoje não está mais na Fabbrica, mas ele é quem fazia as campanhas da Benetton e tinha essa linha. É um trabalho muito interessante porque é ousado. É uma fábrica de experimentação mesmo, mas é uma experimentação focada no resultado. Você põe a mão na massa. Não é uma escola de aula teórica.

Comunità - E você ficou seis meses nessa escola...

Bodanzky - A Fabbrica Cinema é independente. Lá eles são co-produtores do filme e entraram com um aporte, dinheiro mesmo. Nós fizemos a primeira parte de montagem do filme dentro do espaço da Fabbrica, mas a parte de finalização fizemos em Roma, no CineCittà. Então, não trabalhei com outros jovens, trabalhei com profissionais de cinema da Itália, contratados pela Fabbrica.

Comunità - E você já conhecia essa maneira de trabalhar?

Bodanzky - Não, só soube através do Marco Müller, que é também o diretor da área de cinema da Fabbrica, depois que ele escolheu o roteiro do B7C.

Comunità - E como foi estar na pré-seleção do Oscar?

Bodanzky - Foi muito legal. Em pensar que depois de tanta luta... O caminho do "Bicho" nos surpreendeu. Quando sonhamos em fazer esse projeto, é claro que nosso objetivo era fazer um filme que falasse com o público. Mas nossas expectativas foram superadas. Estamos muito satisfeitos e cada passo, cada vitória nós comemoramos muito. Foi feito com uma equipe muito dedicada, um elenco muito empenhado, mas todo mundo se surpreendeu porque o projeto nasceu pequeno. E foi tomando esse tamanho, essa forma surpreendente.