In Memoriam

De que lado vocês está?

As recentes declarações do Presidente Lula acerca de sua posição no espectro político, de que "nunca aceitou o rótulo de esquerda", desencadearam polêmicas de vários tipos. Tudo que fala espontaneamente o atual Presidente da República é motivo de críticas e especulações variadas, visando ressaltar supostas ou possíveis contradições em suas afirmações. Desses tantos momentos, este é o mais contundente para pessoas de direita afirmarem que, depois da queda do muro de Berlim, ser "de esquerda" ou "de direita" não tem mais sentido porque esse grande evento da história moderna determinou a crise profunda das ideologias. A este respeito Norberto Bobbio, o famoso cientista político italiano, afirma em seu livro Direita e Esquerda: "Podemos tranqüilamente objetar [...] que, na verdade, as ideologias não desapareceram, ao contrário, estão mais vivas que nunca. As ideologias do passado foram substituídas por outras, novas, ou que se pretendem novas. A árvore das ideologias continua sempre verde. Aliás, como já ficou demonstrado em várias ocasiões, não existe nada de mais ideológico que a afirmação da 'crise' das ideologias".
Como se sabe, a visão distorcida do que é a esquerda e, sobretudo, o comunismo, vêm de longe e chegou a criar preconceitos radicais em relação aos que seguiam essa ideologia, sobretudo nos países de formação capitalista e católica. Em minhas recordações pessoais me vem à memória o fato de que, nas famílias de classe média do sul da Itália, e em certas regiões do norte da Itália, profundamente católicas, ter um filho ou um parente que se identificava com os partidos da esquerda, particularmente com o partido comunista, era uma desgraça e uma vergonha. Lembro-me também que, no meu povoado, nos primeiros anos da era democrática, o partido comunista conseguia 5.000 votos dos 8.000 eleitores, mas na lista dos candidatos não havia um sequer pertencente à chamada classe intelectual (médicos, arquitetos, professores do primário ou do secundário) e os prefeitos eleitos eram sempre artesãos ou dirigentes sindicais dos "bóias-frias". Ainda quanto ao que representava ser de esquerda, ou até ao medo conseqüente que isso podia dar, há uma outra prova: quando fui à Espanha pela primeira vez, em 1954, com uma bolsa de estudos, para conseguir o visto de entrada concedido pela embaixada desse país na Itália, o requisito mais importante não era ter bons antecedentes, mas a declaração do pároco afirmando a não-adesão do requerente aos partidos de esquerda... Durante anos, a filiação ao partido comunista italiano era igualmente impedimento para a concessão do visto de entrada nos Estados Unidos.
Cabe ainda assinalar que, no caso da Itália, o combate aos comunistas pôde ser, e veio sendo, usado até como forma de marketing: há alguns dias atrás o presidente do Conselho de Ministros, Silvio Berlusconi, declarou a um grupo de empresários americanos que poderiam investir tranqüilamente na península, porque não existia mais "perigo do comunismo...".
No Brasil, até hoje a figura do comunista está relacionada com a idéia de "subversivo", que por extensão, depois do 11 de setembro, pode até ser confundida com o chamado "terrorista". Como se vê, Bobbio sabe o que diz... Esse tipo de pressão, nas sociedades conservadoras, como é fácil de compreender, pode contribuir para criar uma situação de constrangimento para os que lutam contra as desigualdades. Que o digam os padres da "Teologia da Libertação", que pagaram e continuam pagando na América Latina um preço muito elevado por defender os princípios da justiça social pregados por Cristo. Exemplo macroscópico disto é o teólogo Leonardo Boff, obrigado pela Igreja a se calar por muitos anos e até a ver-se levado a deixar a irmandade.
Então, não deve causar surpresa o fato de que o Presidente do Brasil declare "da boca para fora" sua distância das idéias ditas "de esquerda". Alguém já disse que "nosso único bem natural é a vida, e o que é importante é como a gastamos". Em outras palavras, mais que os rótulos ou as falas circunstanciais, o que importa são os comportamentos e as ações.
O que define ser de esquerda ou de direita? A este respeito o sociólogo Emir Sader, citando recentemente o mesmo Norberto Bobbio, disse: "Como direita continuo a considerar aquelas forças que se põem a serviço dos interesses das pessoas satisfeitas. Os outros, os que se sentem e agem do ponto de vista dos pobres, dos danados da terra, são e serão sempre a esquerda. No nosso tempo, todos os que defendem os povos oprimidos [...] são de esquerda. Aqueles que, falando do alto do seu interesse, dizem que não vêem porque distribuir um dinheiro que suaram para ganhar, são e serão sempre a direita".
Usando, portanto, este parâmetro, podemos afirmar que, por suas incansáveis lutas pela dignidade dos mais necessitados, por suas posturas contrárias às injustiças de um sistema baseado na mais cruel desigualdade econômica e social, e até pelo risco à própria integridade física que suas atitudes comportavam, podemos tranqüilamente afirmar que o Presidente Lula é de esquerda, e que nunca poderá ser de direita. E que, exatamente por isso, felizmente representa hoje uma esperança para aqueles que sonham com um mundo melhor e mais justo.

Giuseppe D'Angelo